A Gangorra da Educação

Bom dia, pessoal!

No final da década de 1970, quando eu fazia o ginásio, tive uma professora de Matemática que, desde o primeiro dia de aula, nos informava que tinha uma regra da qual não abria mão. O aluno que escrevesse o resultado de um problema, ainda que certo, sem mostrar o desenvolvimento do cálculo, perdia todos os pontos da questão. Regra simples, regra conhecida e regra aplicada.

Hoje em dia, essa professora, provavelmente, seria processada por responsáveis que têm a tarefa de zelar pelo desenvolvimento das crianças. Como assim? Meu filho acertou o resultado e tirou zero? Que absurdo!

Além de processada, provavelmente ela seria advertida pela direção ou talvez até perdesse seu emprego. Eu acho que este quadro imaginado é bastante plausível e retrata muito bem o mundo de hoje. O mais preocupante ainda é pensar que são pessoas adultas e responsáveis os que, hoje, são os primeiros a achar absurdo o cumprimento de uma regra escolar conhecida e que visa ao desenvolvimento da criança! Sim, porque essa regra era muito mais justa do que se poderia pensar hoje. Em um problema de matemática, você pode pensar corretamente e apenas errar um cálculo. Desta forma, ela dava um peso especial ao raciocínio, o que me parece muito justo.

Mas, se naquela época, essa professora era valorizada, hoje, não tenho dúvida de que ela seria punida pela conduta, o que mostra que o mundo em que vivemos não nasceu pronto, mas é fruto de um desenvolvimento e todos nós somos agentes deste desenvolvimento, e não apenas suas vítimas. 

Claro que, se essa professora ainda estivesse dando aula hoje, ela provavelmente teria adaptado seus métodos para sobreviver na profissão, afinal, essa é a realidade em que temos que viver. Os problemas existem e são muitos, mas as respostas só podem ser encontradas por quem está aqui. O que acredito ser irônico é que os problemas da educação vão acabar saindo da esfera escolar e voltando para a esfera do lar. Um professor, hoje, por mais que queira mudar o mundo, precisa evitar ser processado por centenas de responsáveis. Desta forma, somente um responsável terá autonomia para educar, o que é totalmente diferente de instruir, uma criança sob seus cuidados, e esta criança, obrigatoriamente, será uma exceção na sua turma. Todos que dizem lamentar o atual sistema de ensino, terão que assumir o protagonismo da educação de seus filhos, porque os professores estão de mãos e pés atados. Ou seja, aos poucos, a gangorra da educação volta à posição anterior. 

Tenham todos uma excelente semana! 

Livros no Isolamento

Bom dia, pessoal!

Os livros têm sido uma companhia indispensável, pelo menos para mim, no isolamento social provocado pela pandemia de COVID-19. Eu tenho lido bastante, mas no último ano (março/2020 a março/2021) só adquiri dois livros em papel. Isso me deixa com certa dor na consciência, porque sei que não é um comportamento que ajude às nossas já poucas livrarias, que estão passando por momentos muito difíceis.

Tenho dado clara preferência a aquisição de livros eletrônicos por uma questão de infraestrutura. Eu tenho um espaço limitado e pequeno para armazenar livros aqui em casa. A solução até então usada era a doação periódica, mas essa opção foi inviabilizada pelo fato de eu não ter carro e não estar circulando por aí em transporte público. Resultado: se antes, eu adquiria livros eletrônicos para facilitar a vida da minha coluna (livros de mais de 500 páginas são pesados!), agora tenho dado preferência a esse tipo de livro, não importando mais o tamanho da obra.   

Na minha opinião, essa migração de formato traz uma séria consequência, que é justamente o fim das doações. Mesmo que eu queira, não tenho como doar livros eletrônicos para pessoas e bibliotecas ou mesmo vendê-los para sebos. Isso é muito ruim, porque há uma quantidade enorme de pessoas que se beneficia destas práticas para conseguir os livros necessários para estudar, por exemplo.

Eu espero que essa seja uma situação temporária, mas me pergunto se as livrarias e sebos vão aguentar este período difícil pelo qual estamos todos passando. Claro que talvez a situação aqui em casa não seja a regra, e eu espero que realmente não seja, mas é algo que me preocupa. Não sei se já existe, mas talvez fosse muito interessante a criação de um serviço que recolha livros em domicílio.

Enquanto não descubro nada do gênero, só posso continuar com os livros eletrônicos e torcer para os livros em papel consigam sobreviver a esses tempos difíceis. Tenham todos uma ótima semana!

Mercado faz pensar ?

Bom dia, pessoal

Vocês já foram fazer compras em um super ou hiper mercado e deram de cara com aquelas sucessivas prateleiras cheias de produtos? Provavelmente sim! Neste caso, vocês já pararam para pensar nas mensagens que estão ali, prontas para serem ouvidas?   

A primeira mensagem é um depoimento sobre nossa época. Vou chutar o número, mas acredito que esteja errando para menos: durante cerca de 95% da história humana neste planeta, vivemos a escassez alimentar. A fome era bem mais comum do que uma alimentação minimamente suficiente. Desde uns cem anos para cá é que o ser humano (parte deles, pelo menos) soube o que é uma abundância alimentar.

A segunda mensagem é que essa abundância alimentar trouxe ao mundo uma série de produtos que podem até ter acabado com a fome, mas que apresentam uma qualidade  alimentar ruim, quando não prejudicial à saúde humana. A  produção de alimentos para atender a um grande número de pessoas passou, ao longo do tempo, a utilizar remédios (agrotóxicos, pesticida, herbicidas etc.) e técnicas (rebanhos confinados, hormônio de crescimentos etc.) que geram doenças a longo prazo em seus consumidores.

A terceira mensagem nos fala sobre desigualdade. Aquelas prateleiras cheias nos mostram alimentos que não são para todos os seres humanos, mas apenas para aqueles que podem pagar por eles. Não é  verdade que o desenvolvimento veio para acabar com a fome no mundo. Na verdade, esse desenvolvimento até tem o potencial de eliminar a fome no mundo, mas ele tem toda uma conotação comercial que visa ao lucro e acaba servindo para marcar ainda mais as desigualdades sociais.

Da próxima vez que vocês forem fazer compras no mercado, contemplem as prateleiras cheias e ouçam o que elas têm a dizer. Vocês podem ficar surpresos em ouvir como elas são tagarelas!

Uma ótima semana a todos!

Hábito ou vício?

Bom dia, pessoal.

Sei que serei bem simplista, mas eu diria que a grande maioria dos hábitos que adquirimos nascem para melhorar nossa saúde, seja ela física ou mental. Escovar os dentes, por exemplo, é um hábito que tem a ver com nossa saúde física, enquanto assistir a jogos de futebol na TV ajuda a saúde mental de quem gosta desse esporte. Um hábito tem, assim,  a função de fazer bem para a pessoa que o pratica. Sou capaz de apostar que ninguém tem o hábito de chutar a parede ou assistir assiduamente aos jogos de um esporte do qual não gosta.

Pode haver um momento, porém, em que o hábito perde sua função original. De repente a ciência descobriu que escovar os dentes é ruim ou você descobriu coisas mais interessantes e não liga mais para o futebol. Nestes exemplos, os hábitos que até então eram bons para você passam a não fazer mais sentido. A situação estaria resolvida com uma simples mudança de hábito, substituindo-o por outro que seja mais coerente com o que gostamos ou com o que nos faz bem. Entretanto, muitas vezes, nos descobrimos incapazes de modificar nossos hábitos e, nesse instante, eles se transformam em vícios.

Uma pessoa só depende de si mesma para mudar um hábito; ela está no controle. Por outro lado, mudar ou acabar com um vício é bem mais difícil e, geralmente, requer a ajuda de outras pessoas. De novo, sei que estou simplificando muito a situação, mas em tese, acredito que todo vício começou como um hábito sobre o qual perdemos o controle. Talvez aí esteja a armadilha do  “paro quando eu quiser”: quando a pessoa acredita que aquilo é apenas um hábito e que tem total controle sobre ele.

Toda essa linha de pensamento surgiu enquanto eu assistia ao noticiário que falava sobre jogador de futebol detido em cassino, polícia interrompendo festas que hoje são ilegais e outras notícias do gênero. Comecei a pensar se a necessidade de as pessoas não apenas terem momentos de felicidade, mas de fazerem com que esses momentos sejam o mais públicos possíveis, não se tornou um vício que, mesmo sabendo que põe em perigo a saúde de todos, se tornou incontrolável. Começo a achar que dizer que a sociedade está doente não é apenas uma figura de linguagem, mas a mais absoluta e triste verdade. 

Ninguém tem dúvida de que o lazer é um hábito importante para manter a saúde das pessoas. Entretanto, acho que essas aglomerações não são apenas momentos de lazer, mas a necessidade que muitas pessoas têm de mostrarem-se felizes, ainda que não sejam. É bem parecido com o que acontece no mundo virtual, onde as pessoas se mostram sempre felizes, como se a vida não tivesse um outro lado. Por isso, hoje, eu acho que tem muito de vício na formação de muitas destas aglomerações, o que, infelizmente, torna a aplicação da lei muito mais difícil.

Tenham todos uma ótima semana.

Foco e Atenção

Bom dia, pessoal.

Há alguns dias, eu vi um vídeo no canal @vida veda (YouTube) com uma explicação singular sobre o funcionamento da mente em relação às tarefas que ela executa. De acordo com a explicação, a mente é monotarefa, ou seja, ela só consegue executar uma tarefa por vez, o que inviabiliza totalmente aquela ideia de que algumas pessoas conseguem fazer várias coisas ao mesmo tempo.

Essa impressão que temos deriva do fato de a mente ser extremamente rápida. Ela , na verdade, faz uma ação por vez, mas de forma tão rápida que pode dar ao nosso consciente essa sensação de que várias coisas estão sendo feitas simultaneamente.

Para o pessoal de eletrônica ou de computação, esta explicação pode parecer plágio da descrição do funcionamento de um microprocessador, a “inteligência” de um um computador. Entretanto, essa explicação não foi tirada de um livro de eletrônica moderno, mas de uma tradição médica indiana de, pelo menos, dois mil anos! 

O problema é que tudo tem um limite. O nosso foco e a nossa atenção não acompanham a velocidade da mente. Assim, ao tentarmos fazer várias coisas “ao mesmo tempo”, acabamos dividindo nossa atenção entre todas essas tarefas e acabamos não fazendo nenhuma delas da melhor forma possível. Menos mal se alguma tarefa já tiver certo automatismo, mas é um grande problema caso você tenha que se concentrar em algo.

Essa colocação milenar combina perfeitamente  com a constatação moderna de que a vida acelerada traz inúmeros problemas de déficit de atenção, que é um problema razoavelmente recente e que não para de aumentar. O que ocorre, em essência, é que existem tarefas demais exigindo nossa atenção simultaneamente e nosso “processador”, por mais impressionantemente rápido que seja, não consegue dar conta.

Para usar uma analogia eletrônica, é como você abrir tantos aplicativos no celular, que o aparelho não consegue executar mais nada e acaba travando. Nesse caso, você tem a opção de trocar o celular por um modelo mais rápido. Entretanto, você não tem como trocar ou atualizar sua mente, assim como não há uma pílula mágica que dê jeito na situação.

Tudo o que podemos fazer é nos adequar ao problema e, para isso, temos que diminuir o número de coisas que competem por nossa atenção. Ou seja, desacelerar e diminuir a quantidade de estímulos simultâneos não é apenas um estilo de vida, mas uma necessidade médica. Práticas do tipo: não ter três celulares, tentar conversar com alguém sem usar um teclado ao mesmo tempo, jantar sem ter uma televisão ligada etc. podem nos ajudar mais a focar nossa atenção que qualquer remédio.

Se você está fazendo outras coisas enquanto lê esta postagem, tente parar de fazer essas outras coisas, leia o texto de novo e perceba a diferença na sua atenção.

Tenham todos uma ótima semana!

Odisseia – Parte 9 (Comentários Gerais)

Bom dia pessoal!

Termino este trabalho de leitura de Odisseia com alguns comentários. Se você não leu as oito partes anteriores que fizeram parte deste estudo, é interessante ler a parte1, a parte2 , a parte 3, a parte4, a parte5, a parte6, a parte7 e a parte8 antes de continuar a ler esta postagem.

A Odisseia, de Homero, definitivamente, não é uma obra humanista ou sequer ética. As virtudes e defeitos dos seres humanos são apenas o reflexo do favor ou não dos deuses gregos. Mesmo a tão afamada astúcia de Ulisses, na maioria das vezes, é apenas o cumprimento das instruções dos deuses, principalmente de Atena e Circe.

O final da história representa muito bem a influência desses deuses na vida dos mortais. Após promover o massacre dos pretendentes, Ulisses reconhece que está sujeito a ser castigado pelas leis dos mortais. Entretanto, os deuses mostram que sua vontade é superior a qualquer tipo de lei e, o fato de serem prontamente atendidos reforça essa posição.

Outra coisa que chama a atenção é o papel feminino na sociedade. As deusas parecem ter uma posição de igualdade entre os imortais, mas as mulheres mortais são tratadas ora como objetos, ora como mercadoria. Tanto Helena como Penélope são incapazes de uma postura independente. O papel social de Penélope mostra toda sua irrelevância na forma como o próprio filho, Telêmaco, já entrando na fase adulta, lhe fala. Fica claro desde o princípio que a grande preocupação de Telêmaco é o fato de seus bens estarem sendo consumidos e não o de que sua mãe esteja sendo desrespeitada.

Também é curioso que seja na Odisseia, e não na Ilíada, que pormenores da Guerra de Troia sejam contados. O trecho em que, no Hades, a alma de Agamenon está contando a Aquiles como havia sido o funeral deste, quando chegam as almas dos pretendentes, parece deslocado na obra, como se houvesse sido acrescentado mais tarde no “texto”. Coloquei esse último termo entre aspas porque é sempre bom lembrar que este poema foi criado como uma obra oral e só muito tempo depois foi registrado na escrita.

Por fim, destaco como o destino tem papel importante nesta obra. Tudo o que acontece já era, de certa forma, conhecido por alguém. O ciclope Polifemo sabia que seria cegado por alguém chamado Ulisses. O rei Alcino sabia que a nau que transportou Ulisses para Ítaca seria destruída em seu retorno. Como essas, vária passagens da história mostram o destino visto como uma coisa já determinada e sobre a qual o ser humano não tem ingerência.

Enfim, é um clássico e sua longevidade mostra que ele atravessou diferentes fases literárias e de pensamento da humanidade e continua firme e forte. Para fazer este trabalho, utilizei a versão em prosa da editora Nova Cultural, com a tradução de Antonio Pinto de Carvalho. Está em meus planos ler tanto a Ilíada como a Odisseia em verso, mas isso vai fiar para o futuro.

Uma ótima semana a todos!

Odisseia – Parte 8

Bom dia pessoal!

Vou, finalmente, fechar a leitura de Odisseia, de Homero. Se você não leu as sete primeiras partes deste estudo, é interessante ler a parte1, a parte2 , a parte 3, a parte4, a parte5, a parte6 e a parte7 antes de continuar a ler esta postagem.

Chegamos ao ponto de convergência da história e os personagens passam a estar na mesma linha temporal. Ulisses está em Ítaca, para onde foi transportado pelos Féaces. Telêmaco ainda se encontra no palácio de Menelau e os pretendentes e Penélope estão em Ítaca, no palácio de Ulisses. A partir daqui, faltam onze rapsódias para terminar a história, mas há uma mudança perceptível no ritmo como essa história é contada, como se ela tivesse sido escrita por outra pessoa. Então, vamos lá …

Uma vez tendo chegado incógnito à Ítaca, Ulisses é recebido por Atenas, que o disfarça, fazendo-o assumir a aparência de um velho e esfarrapado mendigo. Assim disfarçado, Atenas o envia à casa do porqueiro, por esse ser um servo fiel. A ideia é que Ulisses colete informações e aguarde lá enquanto Atenas vai buscar Telêmaco no palácio de Menelau.

Eumeu, o porqueiro, não reconhece Ulisses, mas, apesar de sua aparência, o recebe com as honras devidas a um hóspede. Atenas avisa Telêmaco sobre a emboscada preparada pelos pretendentes e o envia para casa, dizendo-lhe que, antes de mais nada, vá à cabana de Eumeu. Assim que se encontram, Ulisses identifica-se a Telêmaco (este era um bebê quando Ulisses foi para Troia) e, juntos, eles planejam destruir os pretendentes.

Ulisses vai para seu palácio e é reconhecido apenas por seu velho cão, Argos, que morre imediatamente depois. No palácio, devido a sua aparência, Ulisses é humilhado pelos pretendentes e por algumas servas que mostram não ser fiéis a seus amos. Entretanto, Penélope o trata com respeito e ordena a uma velha serva que lave os pés do estrangeiro. Essa serva, Euricléia, reconhece Ulisses por causa de uma cicatriz antiga. porém ela a faz jurar que não contará nada a Penélope.

Enquanto isso, Penélope resolve dar fim à situação do assédio dos pretendentes através da criação de um concurso de arco, ao fim do qual, ela promete se casar com o vencedor.

[…] estou na intenção de propor um certame. o certame dos machados, que Ulisses, em seu palácio, alinhava, em número de doze, como se fossem estais de uma nau; depois, a boa distância, enviava uma seta através deles. Quero agora impor este certame aos pretendentes: aquele que em suas mãos retesar mais facilmente o arco, e cuja flecha atravessar os doze machados, a este seguirei, abandonando este lar da minha juventude, tão belo, tão abastado, que julgo, nunca hei de esquecer, nem sequer em sonhos.

Claro que é Ulisses, ainda transfigurado em mendigo, o único que consegue cumprir a prova e, em seguida, com a ajuda de Telêmaco e de dois servos fiéis, ocorre uma verdadeira carnificina no salão do palácio e todos os pretendentes são mortos, assim como doze servas infiéis.

No meio de todo esse banho de sangue, Penélope estava dormindo em seu quarto (sono esse providenciado por Atenas) e, terminada a luta, Ulisses, já com seu aspecto normal, se reencontra com Penélope. Tudo resolvido, Ulisses diz a Telêmaco que eles precisam pensar na forma com que justificarão ao povo de Ítaca a morte de tantos homens.

Quanto a nós, estudemos a melhor maneira de tudo servir bom efeito. Se alguém, nesta terra, matou um homem, um só, sem ninguém que lhe vingue a morte. o criminoso exila-se e abandona os parentes e a terra pátria. Ora, nós derrubamos os baluartes da cidade, os jovens as mais ilustres famílias. Aconselho-te a que penses na situação que criamos.

Eles deixam os mortos para serem recolhidos por suas famílias e vão para a casa de Laertes, onde Ulisses reencontrará o pai. Aqui, começa, então, a última rapsódia (XXIV) na qual as almas dos pretendentes chegam ao Hades, enquanto o povo delibera sobre a punição de Ulisses e segue para a casa de Laertes para confrontá-lo.

Entretanto, o que poderia gerar uma série de novas rapsódias é rapidamente resolvido pela intervenção dos deuses, terminando a história.

Zeus, o amontoador de nuvens, lhe disse em resposta: “Minha filha, por que essas perguntas e interrogações? Não decidiste acaso tu mesma que Ulisses regressaria a Ítaca e puniria seus inimigos? Procede como quiseres; mas vou declarar-te o que penso. Uma vez que o nobre Ulisses se vingou dos pretendentes, por que é que os dois partidos não se obrigarão por solene juramento, a que ele continue reinando? Façamos que, em suas almas, esqueçam o morticínio dos filhos e dos irmãos, de sorte que a amizade renasça entre os cidadãos e de novo floresça a riqueza e a paz”.

[…]

“Ponde fim, habitantes de Ítaca, a esta cruel guerra. Basta de derramar sangue. Separai-vos imediatamente”.

Assim falou Atena, e todos ficaram lívidos de medo. Apavorados com o retumbante grito da deusa, largaram as armas, que caíram no solo e fugiram para a cidade, movidos apenas pelo desejo de viver.

Chegamos ao fim da Odisseia e farei uma última postagem com comentários gerais sobre a obra. Uma ótima semana para todos.

Dois Papas

Bom dia, pessoal.

Assistindo ao filme Dois Papas, de Fernando Meirelles, fiquei pensando no poder do diálogo. Como o próprio nome diz, um diálogo necessita de duas partes que tenham vontade não só de falar, mas também de ouvir.

Os fatos conhecidos desta história são a existência de um Papa (Bento XVI) que abdica, o que não acontecia desde 1415, e a existência de um Cardeal Argentino (Jorge Bergoglio) que pregava uma Igreja mais simples e mais próxima das pessoas. É fato também que Bento XVI é uma pessoa conservadora e não muito popular.

Os diálogos do filme são produto da imaginação do roteirista, mas, ainda que as palavras sejam fictícias. de alguma forma essas duas pessoas completamente diferentes realmente conseguiram dialogar e trabalhar juntas. Infelizmente, isso não é uma coisa comum e é interessante refletir em como aquele diálogo foi possível.

Fico pensando se a resposta não está no objetivo comum. Por mais diferentes que sejam, esses dois homens queriam a sobrevivência da Igreja e não a manutenção do poder. Nesse sentido, o passo mais difícil em direção ao diálogo parece ser o de Bento XVI, já que ele tinha o poder e foi capaz de abrir mão deste poder em nome de um objetivo maior.

Não sei se um dia saberemos o que realmente aconteceu, mas, se minha interpretação está correta, isso explica porque esse tipo de entendimento e de cooperação é tão raro. A manutenção do poder pessoal é normalmente colocada acima dos objetivos. Assim, um prefeito é eleito para cuidar de uma cidade, mas a manutenção do poder o fará priorizar suas próprias necessidades. Da mesma forma, uma pessoa é designada para liderar uma equipe, mas ela tratará primeiro de manter sua posição. O resultado destes exemplos é que o objetivo inicial ficará sempre em último plano e dificilmente será alcançado.

O diálogo dentro de qualquer tipo de hierarquia parece ser visto como uma potencial ameaça, uma tentativa de “puxar o tapete”, e nunca será sincero ou proveitoso se cada frase tiver que ser medida e pensada para que as partes não se comprometam.

Por isso, eu gostei do filme. É bom saber que o ser humano, por difícil que seja, é capaz de dialogar. Há algumas cenas engraçadas e outras que nos relembram um passado difícil da História, mas não vou comentá-las para não gerar spoilers.

De qualquer forma, quando vocês virem ou revirem esse filme, pensem na capacidade de dialogar como fator necessário de mudança e de crescimento. Tenham todos uma ótima semana!

Odisseia – Parte 7

Bom dia pessoal!

Já que o Carnaval foi cancelado, vou aproveitar para encerrar hoje a lista dos episódios que considero mais relevantes na narrativa que Ulisses faz de suas aventuras. Se você não leu as seis primeiras partes deste estudo, é interessante ler a parte1, a parte2 , a parte 3, a parte4, a parte5 e a parte6 antes de continuar a ler esta postagem.

Hades – Seguindo então em sua jornada, Ulisses vai ao Hades, onde encontra diversas almas, inclusive a de sua mãe, que ele não sabia que havia falecido. Encontra também a alma de Tirésias, razão de sua ida a este lugar. Tirésias explica a Ulisses as causas de todas as dificuldades que ele encontra para regressar a seu lar.

Glorioso Ulisses, anseias pelo regresso doce como o mel, mas um deus torná-lo-á custoso, porque, segundo penso, o Sacudidor da terra não te deixará passar; seu coração está possuído de rancor contra ti, por teres cegado seu filho querido. Mas, a despeito de sua cólera, poderás ainda, à custa de inúmeras provações, chegar à pátria, se estiveres disposto a conter teu coração e o dos companheiros.

Aqui, então, Ulisses percebe que o Sacudidor da terra (Poseidon) está tentando vingar-se dele por este ter cegado seu filho, o ciclope Polifemo. Outras almas são ainda vistas como, por exemplo, Agamenon, Aquiles e Pátroclo. Encerrada a visita ao Hades, Ulisses retorna a ilha de Circe e esta lhe fala sobre os desafios que ele encontrará pela frente e o que deve fazer para ultrapassá-los.

Região das Sereias – Na mitologia grega, as sereias eram um híbrido de mulher e ave. Parando para pensar, faz mais sentido ver, no mar, rochedos povoados por aves que por peixes! A figura da sereia como uma mulher com cauda de peixe é bem mais recente (Idade Média).

As sereias da mitologia grega viviam em rochas e seu canto atraía os marinheiros, que encalhavam seus navios e viravam a refeição do dia. Para evitar que Ulisses tivesse o destino de tantos marinheiros, Circe explica como ele deve proceder para ouvir o canto das sereias e ainda assim evitar o desastre.

Chegarás, primeiro, à região das Sereias, cuja voz encanta todos os homens que delas se aproximam. Se alguém, sem dar por isso, delas se avizinha e as escuta, nunca mais sua mulher nem seus filhos pequeninos se reunirão em torno dele, pois que ficará cativo do canto harmonioso das Sereias. Residem elas num prado, em redor do qual se amontoam as ossadas de corpos em putrefação, cujas peles se vão ressequindo. Prossegue adiante, sem parar; com cera doce como mel amolecida tapa as orelhas de teus companheiros, para que nenhum deles possa ouvi-las. Tu, se quiseres, ouve-as; mas, que em tua nau ligeira te atem pés e mãos, estando tu direito, ao mastro, por meio de cordas para que te seja dado experimentar o prazer de ouvir a voz das Sereias.

Tudo se passa segundo as instruções de Circe e Ulisses e seus homens seguem viagem sem serem molestados pelas Sereias que, literalmente, ficam a ver navios.

Cila e Caribdes – Circe afirma a Ulisses que a navegação entre esses dois rochedos (personificados como deusas) só é possível aproximando-se de Cila e, ainda assim, haverá um preço em vidas humanas a ser pago. Se, ao contrário, ele se aproximar mais de Caribdes, perderá todos os seus companheiros e não apenas alguns. Bem, Ulisses segue as instruções de Circe, aproximando-se de Cila e perdendo seis de seus homens.

Navegávamos, pois, ao longo do estreito, lamentando-nos. De um lado acha-se Cila e, do outro, a famosa Carabdes que com terrível fragor engole a água salgada. Quando a vomita, todo o mar entra a agitar-se, efervescente, como a água de um caldeirão em cima de uma fogueira: a espuma jorra até o alto dos escolhos e recai sobre os mesmos. Depois, quando de novo engole a água salgada, vemo-la borbotar toda, na profundidade aparecendo por baixo o fundo de negra areia. Meus companheiros, de pavor, se tornaram lívidos.

Temerosos da morte, encarávamos Caribdes. Nesse momento, Cila arrebatou do côncavo da nau seis de meus homens, os melhores pela força de seus braços. Ao desviar a vista para a ligeira nau e para os companheiros, só distingui os pés e as mãos destes levantados no ar.

Ilha de Hélio – Passando por Cila e Caribdes, Ulisses chega à ilha de Trinácia, onde Circe lhe havia previnido que não matasse os rebanhos de Hélio, sendo melhor, para evitar a tentação, não se aproximar da ilha.

Chegarás, em seguida, à ilha de Trinácia onde pastam, em grande número, as vacas e as anafadas ovelhas de Hélio, sete manadas de vacas e sete belos rebanhos de ovelhas, cada um com cinquenta cabeças […] Se lhes não fizeres mal, e cuidares apenas do teu regresso, poderás ainda arribar a Ítaca, não sem primeiro sofrerdes provações; mas, se as maltratares, então prevejo a perda de tua nau e de teus homens; e, embora evites a morte, só tarde e em mísero estado voltarás a terra pátria após haver perdido todos os companheiros.

A intenção de Ulisses é a de passar ao largo da ilha, mas, seus homens, exaustos após a passagem pelos rochedos, querem parar na ilha para descansar e juram não tocar nos animais. Assim se faz, mas ocorre, porém que, devido a ventos contrários e incessantes, a nau de Ulisses fica presa na ilha por um mês e os alimentos dados por Circe são totalmente consumidos.

Enquanto meus companheiros dispunham de víveres e de tinto vinho, pouparam as vacas, pois desejavam salvar a vida. Quando, porém, as provisões de bordo se esgotaram, a necessidade os obrigou a irem caçar por aqui e por ali, tomando peixes, aves, tudo quanto lhes vinha à mão, servindo-se de recurvos anzóis, porque a fome lhes torturava o estômago.

Vencidos pela fome e aproveitando-se de que Ulisses havia ido ao interior da ilha para orar aos deuses, os companheiros cedem à tentação e matam vacas de Hélio. Passados alguns dias (o banquete levou seis dias) e com o cessar dos ventos contrários, a viagem continua. Entretanto, uma tempestade se forma e a nau de Ulisses é destruída, sendo ele o único sobrevivente.

Eu ia e vinha de uma a outra extremidade da nau, quando um golpe de mar desconjuntou as tábuas do cavername; a quilha desprendeu-se e foi arrastada pela vaga; o mastro soltou-se e foi quebrar-se de encontro à quilha. Mas ao mastro estava presa uma correia de antena; dela me servi para atar um ao outro o mastro à quilha, e sobre eles me sentei, deixando-me levar pelos ventos funestos.

Após alguns dias vagando pelo mar, Ulisses chega, sozinho e sem barco, à ilha Ogígia, habitada por Calipso.

Ilha Ogígia – Nesta ilha, Ulisses passará os últimos sete anos de sua Odisseia, na companhia da deusa Calipso, até que um concílio dos deuses decida que já é hora de permitir-se que ele siga viagem. Para isso, Calipso é instruída a fornecer a Ulisses uma jangada para que ele alcance a terra dos Féaces, onde poderá conseguir navio e tripulação para voltar para casa. Como vimos, Poseidon, que não estava neste concílio, ainda dificultará a vida de Ulisses, armando uma tempestade que o jogará da jangada ao mar. Ainda assim, ele consegue chegar ao rei Alcino, que lhe fornece os meios necessários para sua volta a Ítaca.

Como eu disse, essas foram algumas passagens que eu selecionei, mas que são um resumo razoável das aventuras de Ulisses desde sua partida de Troia até sua ida rumo à Ítaca. Sua chegada e como ele lida com os pretendentes de Penélope ficam para uma próxima postagem.

Tenham todos uma ótima semana!

Odisseia – Parte 6

Bom dia pessoal!

Vou continuar hoje com minha leitura do livro Odisseia, de Homero. Se você não leu as cinco primeiras partes deste estudo, é interessante ler a parte1, a parte2 , a parte 3, a parte4 e a parte5 antes de continuar a ler esta postagem.

Como dito na última postagem, vou fazer um breve comentário sobre os episódios que considero os mais interessantes da Odisseia.

Terra dos Lotófagos – Apesar de não ser um episódio longo ou extremamente importante, eu o escolhi porque esse é um dos poucos momentos em que a ação de Ulisses não acontece por obediência ou desobediência aos deuses. Tendo chegado a essa terra após tempestades e ventos fortes, Ulisses envia alguns homens para descobrirem em que terra tinham parado. Os Lotófagos (comedores de Lótos) não matam esses homens, mas lhes oferecem uma droga e eles resolvem ficar por ali mesmo. Ulisses percebe o que está acontecendo, resgata seus homens e consegue salvar toda a frota.

Ilha dos Ciclopes – Se no episódio anterior Ulisses mostrou coragem e sabedoria, neste ele vai mostrar imprudência e vaidade. Após entrar na caverna de Polifemo e acabar preso ali com alguns de seus homens, Ulisses descobre que o ciclope não vai recebê-lo como hóspede, mas como refeição. O grego, usando de astúcia, consegue cegar Polifemo e fugir com os homens que lhe restaram para a segurança de seu navio. Entretanto, mesmo cego, Polifemo sai enlouquecido de sua caverna atrás de vingança. Ele não pode ver Ulisses e tudo poderia terminar neste ponto, mas a vaidade humana fala mais alto e Ulisses, de dentro do navio, atrai a atenção do ciclope.

Quando ainda estava a distância de poder fazer-me ouvir, lancei ao Ciclope estas palavras escarninhas: “Ciclope, não era poltrão o homem, cujos companheiros devias devorar em teu côncavo antro, abusando para isso de tua força! Inexoráveis represálias te aguardariam, a ti, cruel, que não trepidavas em comer hóspedes em tua própria casa. Por isso, Zeus e os demais deuses se vingaram!”.

A voz de Ulisses dá a Polifemo uma ideia de onde ele está e, nesta direção, o ciclope atira uma rocha e quase afunda o barco. Até então, Polifemo tem raiva, mas não sabe a quem direcionar essa raiva. De novo, Ulisses vai dar-lhe a informação necessária.

De novo, instigado pelo rancor, lhe gritei: “Ciclope, se algum dos mortais um dia te perguntar a causa de tua vergonhosa cegueira, dize-lhe que foi Ulisses, o saqueador de cidades, filho de Laertes, que tem sua casa em Ítaca”.

Com as informações obtidas, o que resta a Polifemo é pedir que Poseidon, seu pai, o vingue, e é por esta razão que a viagem de retorno , ao invés de poucas semanas, dura dez anos.

“Escuta-me, Poseidon portador da terra, deus de cabeleira anilada. Se verdadeiramente sou teu filho e te orgulhas de ser meu pai, concede-me que nunca regresse a seu torrão natal este Ulisses, saqueador das cidades, filho de Laertes, que habita em Ítaca. Mas, se o destino quer que ele reveja os entes queridos e volte a seu palácio de elevado teto e à terra pátria, faze que isso aconteça ao fim de longo tempo, e depois de ter sofrido variadas provações e perdido todos os companheiros; que chegue em navio estranho e encontre aflições em sua casa!”.

Ilha de Circe – Antes de chegar a Eéia, a ilha da deusa Circe, Ulisses já terá perdido as onze naus que o acompanhavam, só restando sua própria nau e tripulação. Ulisses envia um grupo ao palácio de Circe para conseguir informações. Com exceção do líder do grupo, os demais entram no palácio a convite de Circe e, enfeitiçados por ela, são transformados em porcos. Euríloco, o líder desse grupo, retorna ao navio para informar que seus homens não saíram do palácio e Ulisses vai até lá para resgatá-los.

Claro que, no meio do caminho, um deus lhe aparece para instruí-lo sobre o que fazer para evitar ser enfeitiçado por Circe e para conseguir o retorno de seus homens. Tudo realizado conforme as instruções, Circe, apaixonada por Ulisses, convida a todos para ficarem no palácio, o que ocorre por um ano e, após esse tempo, são os homens de Ulisses que insistem para que ele continue a viagem para casa.

Assim ela falou, e nossos corações generosos ficaram reconfortados. Então, durante um ano, ali nos quedamos, banqueteando-nos todos os dias, tendo carnes e o saboroso vinho em quantidade. Mas quando, volvido este ano, surgiu a primavera, quando, decorridos os meses, chegaram os dias compridos, meus fiéis companheiros, chamando-me à parte, me disseram: “Infeliz, é tempo de pensar na pátria se porventura o destino quer que regresses, são e salvo, a teu excelso palácio e à terra de teus pais”.

Circe, então, “liberta” Ulisses, mas diz que, para voltar em segurança, ele precisa ir ao Hades (mundo subterrâneo, morada dos mortos) para aconselhar-se com a alma de Tirésias.

Pupilo de Zeus, filho de Laertes, industrioso Ulisses, não permaneçais, contrariados, por mais tempo em minha mansão. Antes, porém, tereis de empreender uma outra viagem até às moradas de Hades e da terrível Perséfone, a fim de interrogardes a alma do tebano Tirésias, o adivinho cego que nada perdeu de sua sabedoria.

Bem, vou parando por aqui com a reflexão de como Ulisses, com toda sua astúcia, é constantemente guiado pelos deuses para driblar o destino que lhe seria trágico por conta da vingança de outro deus.

Tenham todos uma ótima semana!